As crianças e os cuidados com a especialização precoce

Você certamente já ouviu alguém dizer que o melhor esporte para a criança é brincar. Mas há alguns anos, por diversas razões socioeconômicas, as crianças tem cada vez menos oportunidades para brincar livremente. Uma das alternativas que os pais encontram para manter as crianças ativas são as escolinhas esportivas.  Segundo o pediatra e médico do esporte Marcelo Riccio, do Laboratório de Performance Humana, as escolinhas são opções muito importantes e válidas. Mas é preciso lembrar que as crianças, especialmente entre 6 e 10 anos, devem ter a iniciação aos movimentos fundamentais no que se costuma chamar de alfabetização esportiva. Com componentes de divertimento e menos foco em competir.

“A orientação dos pais, as brincadeiras infantis, a educação física escolar e também as escolas de esporte podem, de forma conjunta, contribuir para esse processo de alfabetização esportiva, que é a base para um aprendizado motor mínimo para a formação de indivíduos ativos e interessados em atividade física no futuro. Mas por conta da falta de oportunidades, as brincadeiras livres, em que há pouca ou nenhuma interferência de adultos, são substituídas por atividades moderadamente ou altamente estruturadas, com participação maior dos adultos nas decisões do que vai ser feito. Isso tem dado a essas atividades um caráter precocemente competitivo”, explica o médico, que observa por parte dos pais, e eventualmente dos treinadores, uma cobrança exagerada por rendimento ou resultados positivos, podendo induzir uma especialização precoce.

Especialização esportiva precoce é quando se expõe a criança ao treino de uma só modalidade, objetivando a performance, sem valorizar os períodos de descanso ou recuperação.

“Em situações assim acaba ocorrendo um desequilíbrio entre treinos e competições, bem como uma relação entre treino e brincadeiras livres desfavorável para as crianças. Essa abordagem também leva a equívocos como a adoção de modelos adultos para o treinamento de crianças e adolescentes. Sessões muito intensas de treino que aumentam os riscos de lesão, de abandono precoce do esporte e da atividade física. A longo prazo isso é um erro, por que as crianças que se especializam cedo são minoria entre atletas profissionais e com bolsas de estudo em universidades”, revela Marcelo Riccio.

Segundo o médico, a ciência do esporte mostra que um desenvolvimento esportivo de longo prazo é diretamente ligado a uma introdução gradativa das atividades até que a criança ou jovem torne-se um atleta.

“O mais interessante para crianças na faixa etária de 6 a 10 anos, que aliás é o que recomendamos no LPH, é focar no desenvolvimento motor, na alfabetização esportiva e na diversão através do esporte. À medida que a criança vai crescendo, ela passa por um aprendizado do treinamento em si, evolui na adolescência para um treinamento voltado para vencer e mais tarde ao treinamento de alto rendimento voltado para a performance”.

Não há uma regra determinada sobre qual a idade ideal para que uma criança comece a se especializar numa determinada modalidade esportiva. Cada esporte tem sua própria demanda motora, psicológica e específica.

“Ginástica, patinação, saltos ornamentais e natação, por exemplo, exigem uma especialização ainda na infância. Já no futebol, basquete, tênis, golfe, voleibol, polo aquático e outros, ela ocorre na adolescência. Esportes de endurance, como corrida, ciclismo e triathlon têm especialização tardia”, diz o médico, lembrando que ao seguir estas recomendações os pré-requisitos físicos e psicológicos serão preenchidos. Assim os pais poderão ver seus filhos evoluindo adequadamente e tendo uma vida relativamente longa no esporte, seja no alto rendimento ou como bem estar e qualidade de vida.

No LPH, segundo Marcelo Riccio, os pais são orientados em relação à especialização esportivas de crianças e adolescentes. Nos esportes em que há necessidade de especialização precoce o médico recomenda que isso seja feito depois dos 10 anos, na pré-adolescência, com um monitoramento cuidadoso. Esses cuidados evitam as lesões ou mesmo um abandono precoce do esporte. Já em modalidades como futebol, basquete ou vôlei, sugere-se uma especialização a partir de 12 ou 13 anos, coincidindo com o início da adolescência na maioria dos indivíduos. E a especialização mais tardia, como corrida de longa distância, triathlon e ciclismo a sugestão é que seja feita por volta dos 15 anos, na puberdade da maioria dos adolescentes.

“É interessante que as crianças não estejam envolvidas em treinos sistemáticos de forma excessiva. Uma boa conta é pegar a idade da criança e somar mais um, chegando à carga ideal de treinos. Uma criança de 9 anos, no máximo 10 horas semanais de treino. E para cada hora de treino, a criança deve ter duas horas de brincadeiras livres, não ligadas à competição. Importante também é a diversificação precoce, que consiste em variar o tipo de exposição das crianças a esportes contribuindo para a evolução motora. Esse tipo de abordagem ajuda a prevenir lesões esportivas, previne a saída precoce das atividades físicas”, completa o médico.

Profissional de educação física, Christiano Marques é pai de Antônio Pedro, de 11 anos, atleta de futsal do Botafogo. Como um jovem atleta em casa, Christiano decidiu estudar o impacto da atividade física em crianças que treinam em escolinhas que visam a competição. Recentemente, ele levou o filho para uma ergoespirometria no LPH.

“Há boa diferença no volume de treino e na intensidade do exercício entre as escolinhas recreativas, que visam a iniciação esportiva, e as que se concentram na competição. Além disso, tem o lado psicológico, já que a criança tem que assumir um compromisso quando está vinculada a uma federação ou confederação esportiva. O chamado overtraining, ou excesso de treinamento, é um grande fator de risco para essas crianças que praticam o esporte competitivo tão cedo em suas vidas. O trauma pode levar a criança a não querer praticar esportes por um bom tempo”, explica o professor.

Segundo ele, a ansiedade de ver os filhos vencendo a alcançando sucesso ainda quando crianças, é comum em muitos pais, que às vezes tornam-se um problema no desenvolvimento dos filhos.

“Claro que não podemos generalizar, mas a grande maioria dos pais coloca uma pressão muito grande em cima dos filhos. Em muitas situações, esses filhos podem ser a solução dos problemas financeiros dessas famílias. Minha sugestão, no caso das escolinhas voltadas para a competição, é que os pais não pressionem os filhos. Já há uma grande pressão dentro dos próprios clubes. Como pai, posso falar que é preciso estar atento se a criança está feliz fazendo esporte competitivo. Se houver necessidade procure ajuda profissional”.